sábado, 25 de julho de 2015

O Dia Nacional de Tereza de Benguela chama atenção para as questões raciais envolvidas no combate ao machismo e à violência de gênero. Para a pesquisadora Eliane Oliveira, a data é uma conquista importante que mostra o protagonismo das mulheres negras na história e luta social


O dia 25 de julho é, desde 1992, o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. No Brasil, a data foi oficialmente reconhecida em 2014, quando passou a se chamar de Dia Nacional de Tereza de Benguela – importante líder do quilombo de Quariterê, no Mato Grosso.
O reconhecimento tardio dessa data no Brasil mostra como as questões raciais e de gênero são negligenciadas em nossa cultura. A começar pelo estudo de História, já que poucas pessoas realmente aprendem sobre a resistência quilombola contra a escravidão e ainda menos sabem quem foi Tereza de Benguela. Graças a sua liderança exímia, Quariterê se manteve por duas décadas fazendo funcionar um sistema organizado e bem sucedido. Entre as atividades do quilombo, armas de ferro eram fundidas desmanchando algemas e grilhões, existia o plantio de diversos tipos de alimentos e também de algodão, que servia para a confecção de tecidos, além de contar com um parlamento para estabelecer as decisões do quilombo.
Mesmo com fatos tão relevantes como esses, pouca atenção é dada a mulheres como Tereza de Benguela. Para Eliane Oliveira, mestre em Ciências Sociais e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (NEIAB) da Universidade Estadual de Maringá (UEM), esse é um dos pontos que denunciam a invisibilidade das pessoas negras no país. “A população preta lida com a questão da invisibilidade em todos os espaços; num país racista como o nosso, essa é o tipo de data que não ganha destaque. Nossas pautas de lutas ainda são desconsideradas até por aqueles e aquelas que muitas vezes se dizem apoiadores”, afirma.
E a questão da invisibilidade é, de fato, muito problemática. Muitos questionam qual seria a necessidade de se existir uma data específica para as mulheres negras, visto que o 8 de Março, o Dia Internacional da Mulher, supostamente incluiria mulheres de todas as cores e contextos sociais. No entanto, na prática, até mesmo os movimentos sociais de mulheres acabam reforçando e estabelecendo a exclusão das mulheres negras, algo que acontece quando se insiste na universalização da categoria mulher, como se todas as pessoas do gênero feminino dividissem as mesmas reivindicações e necessidades. Na realidade, compreender os mecanismos do racismo no Brasil é imprescindível para que as questões de gênero sejam eficientemente abordadas.
Um exemplo das diferenças entre as demandas das mulheres brancas e negras é a própria ideia do “sexo frágil”, tão insistentemente colocada como característica do gênero feminino. Muitos grupos feministas ainda desenvolvem atividades e conteúdos que questionam a ideia de que mulheres são mais fracas e emocionalmente mais sensíveis do que homens, mas poucos se atentam para a contextualização racial necessária a esse discurso. As mulheres negras brasileiras experimentam, em muitos casos, uma realidade muito distante da fragilização, uma vez que foram utilizadas como mão de obra escrava e até hoje desempenham funções que exigem resistência física.
O fato é que as mulheres negras ainda são retratadas sob a ótica da escravidão, pois ainda são vistas como mais fortes e resistentes do que as mulheres brancas. Na prática, essa percepção racista gera muitos prejuízos e situações onde há violação de direitos. Por exemplo, muitas mulheres negras são negligenciadas nas filas dos hospitais enquanto mulheres brancas são colocadas a sua frente para que sejam atendidas – algo embasado pela ideia de que mulheres negras são mais fortes e sentem menos dor do que as brancas. Para tentar reparar as práticas racistas nos ambientes hospitalares, o Sistema Único de Saúde (SUS) chegou a lançar a campanha “SUS Sem Racismo“, tentando conscientizar os profissionais e a população para que práticas racistas como essas deixem de acontecer.
Ainda em caráter de comparação, os indicadores sociais e estatísticas revelam que as mulheres negras estão na base da pirâmide social e, por isso, enfrentam os piores índices de violência, pobreza e falta de acesso a direitos. Segundo dados organizados pelo Dossiê Mulheres Negras, uma iniciativa do Ipea em parceria com a Secretaria de Política para Mulheres (SPM), a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e ONU Mulheres, revela, por exemplo, que as mulheres negras ainda se mantêm como maioria no serviço doméstico e em empregos sem carteira assinada. Até mesmo os problemas que envolvem a disparidade salarial entre homens e mulheres acabam por se destrinchar mais gravemente quando essas mulheres são negras. Por isso, falar apenas de gênero não é o suficiente para que todas as mulheres sejam, de fato, contempladas.
No Brasil, o problema do machismo também é um problema racial. “O dia 25 coloca a discussão de políticas públicas para esse grupo como pauta a ser considerada, pois são as mais atingidas pelo descaso do Estado. Internacionaliza as pautas, nos aproxima de outras mulheres não brancas numa região geográfica e historicamente marcada pelo machismo e pelo preconceito”, explica Oliveira. “Além do resgate histórico de mulheres negras que sempre estiveram na luta por cidadania, o dia 25 mostra o quanto o feminismo tradicional e acadêmico, na maioria das vezes, exclui ou não considera as vivencias das mulheres negras como relevantes na formação da identidade e luta dessa categoria”, continua. “Mulheres com direitos já é muito, mulheres negras com direitos e data específica para lembrar disso, aí já é pedir demais, né?”, provoca Eliane.
As reivindicações para a data são muitas, desde a violência doméstica até a legalização do aborto, visto que em ambas as situações as mulheres negras são vitimadas em maior número, seja como alvos de parceiros misóginos ou como vítimas da cultura que criminaliza a autonomia da mulher sobre o próprio corpo. Eliane Oliveira também chama atenção para a discussão em torno da redução da maioridade penal, um problema que diz respeito às mulheres negras em muitos aspectos. “É notório que a violência mata mais jovens negros no Brasil, as mães negras querem o direito de criar seus filhos e ter condições sociais de mantê-los longe da criminalidade e violência de todas as formas”, explica. “Nesse sentido, a discussão perpassa qualidade na educação e espaços de acolhimento para os filhos dessas mães que precisam se ausentar da família para gerar renda. Ou seja, creche e escola de qualidade é reivindicação antiga”.
Além das mães que lutam contra a violência policial e reivindicam melhores condições para que suas crianças sejam criadas, a redução da maioridade penal também atinge as próprias jovens, uma vez que o sistema carcerário feminino é um reduto de violações e abusos recorrentes. “Nesse contexto em que pesa o enfraquecimento do ECA e a mudança da Lei que irá atingir a juventude periférica, acredito que essa discussão esteja no topo da lista de prioridades”, declara Oliveira.
Neste ano, inúmeras atividades são realizadas em todo o país; debates, exibições de filmes, documentários e marchas que tentam despertar a população e os movimentos sociais para as necessidades políticas e culturais que as mulheres negras demandam. Em Brasília, acontece a oitava edição do Festival Latinidades e, em São Paulo, a Marcha do Orgulho Crespo toma as ruas.
“É uma conquista para que seja lembrada e fortalecida a luta dessas que ficaram, historicamente, à margem das discussões teóricas e políticas. As mulheres negras se fortalecem como essa data que marca o quanto nossas pautas precisam ser analisadas a partir de outros recortes que não apenas os de classe e gênero. É preciso apontar o quanto racismo nos atinge social e estruturalmente.”, salienta Oliveira. “O dia 25 nos coloca no centro da nossa própria história, contada até então, por outros interlocutores que não são aqueles que vivenciam os acontecimentos de forma real. A mulher negra sai da berlinda do espaço político, onde foi colocada, para ser protagonista e essa data define que sim, podemos falar por nós e precisamos ser ouvidas”, conclui.

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